1984 31 de dezembro

Vai passar a noite da ditadura militar

Samba de Chico celebra a virada da 'página infeliz da nossa história'

No apartamento de Tancredo Neves em Copacabana, no Rio, a família do futuro presidente e seus convidados celebram a passagem do Ano Novo ao som do recém-lançado samba "Vai Passar", de Chico Buarque e Francis Hime. A música havia tomado conta do país como símbolo da transição para o primeiro governo civil após 21 anos de ditadura militar. "Vai Passar" é uma alegoria crítica dos anos sombrios e, ao mesmo tempo, uma celebração da resistência e da esperança, características da produção musical de Chico Buarque naquele período.

A canção começou a ser composta no início de 1984, durante a campanha pelas Diretas, e acabou por se tornar o símbolo musical da chamada Nova República. Em ritmo de samba-enredo, a letra é um saboroso acerto de contas do compositor com o regime que o perseguiu, prendeu, exilou e censurou, mas não conseguiu calar seu talento nem sua identificação com o público e com a luta pela democracia.

Em 1969, no auge da repressão, Chico havia composto "Apesar de Você", samba que se tornou o símbolo da resistência, mesmo proibido de ser tocado em público. No Réveillon de 1984, a ditadura nada podia fazer para impedir a passagem daquele samba popular:

"VAI PASSAR"
De Chico Buarque e Francis Hime

Vai passar
Nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais

Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações

Seus filhos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal
Tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava Carnaval
O Carnaval, o Carnaval
(Vai passar)

Palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
E os pigmeus do bulevar
Meu Deus, vem olhar
Vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade
Até o dia clarear

Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral
Vai passar.