Construção de Brasília

A Cidade Livre

(Foto: Arquivo Público do DF)

Trabalhadores não paravam de chegar para a construção de Brasília. Com a população cada vez maior — que até então se espremia nos barracões de acampamentos improvisados —, as demandas por comércio e por serviços também cresciam na mesma proporção. Como abastecer a despensa da casa? Onde cortar o cabelo? E aonde ir quando chegava a hora do almoço?

A fim de atrair rapidamente comerciantes e empresários que pudessem suprir necessidades tão básicas, o governo passou a conceder benefícios aos novos comerciantes, liberando-os de obrigações como alvará, pagamento de tributos e limitação de horário para funcionamento. Nascia a “Cidade Livre”.

Quando a Novacap começou o loteamento e a instalação da nova cidade, no final de 1956, abriu três largas avenidas e algumas ruas transversais, que inicialmente abrigaram 500 casas na região da chamada Candangolândia. As construções eram todas de madeira, e o plano inicial era derrubá-las assim que a nova capital fosse inaugurada. A Cidade Livre, porém, cresceu tanto que, após a inauguração do Plano Piloto, tornou-se uma cidade-satélite: o Núcleo Bandeirante, que ganhou esse nome depois que o presidente Juscelino Kubitschek viu diversos operários chegando à região trajando calça de brim e os chamou de “bandeirantes modernos”.

Galeria 

Vista parcial do Núcleo Bandeirante. 30/09/1958. Arquivo Público do Distrito Federal.
Casas do Núcleo Bandeirante, em setembro de 1958. (Foto: Arquivo Público do DF)
Rua no Núcleo Bandeirante. Arquivo Público do Distrito Federal
Rua no Núcleo Bandeirante. (Foto: Arquivo Público do DF)
Estação Rodoviária Núcleo Bandeirante. 04/01/1958. Autor: Mario Fontenelle. Arquivo Público do Distrito Federal.
Estação Rodoviária do Núcleo Bandeirante, em 1958.
(Foto: Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF)
Fachada do Cinema na Cidade Livre. Arquivo Público do Distrito Público.
Cinema da Cidade Livre exibe cartazes das atrações. (Foto: Arquivo Público do DF)
Candangos na Cidade Livre. Arquivo Público Distrito Federal.
Candangos na Cidade Livre. (Foto: Arquivo Público do DF)

 

Como não poderia deixar de ser, o aumento da população concentrou grande parte do comércio de toda a região, intensificando o cotidiano da Cidade Livre. No final de 1958, por exemplo, a Novacap tratou de organizar o “dia de compras”: todas as quintas-feiras, um ônibus da companhia passava de casa em casa pegando as mulheres dos funcionários para levá-las às compras no supermercado da Cidade Livre.

Diariamente, antes de os operários partirem para o canteiro de obras pela manhã, aviões traziam jornais encomendados por Clemente Ribeiro da Luz, jornalista e locutor da Rádio Nacional que montou a primeira banca de jornais na Cidade Livre. Depois, ele comprou e equipou bicicletas para vender os jornais de obra em obra.

Durante o dia, duas cornetas suspensas num poste de madeira animavam as ruas com as músicas mais badaladas nas estações de rádio do período. Era “A Voz do Brasil”, serviço de alto-falante fixado na Primeira Avenida e muito utilizado pelas construtoras para passar seus recados aos operários, que, no horário de almoço, costumavam ir para o Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps), um restaurante na Cidade Livre administrado pelo senhor Vítor, um imigrante italiano.

Enquanto isso, os diretores das construtoras procuravam a agência do banco Expresso Universo, que iniciou suas atividades na Cidade Livre em cima de um caixote de bacalhau até que fosse construída sua sede de madeira. Ostentando bilhetes assinados pelo presidente da Novacap, Israel Pinheiro, ou mesmo pelo próprio presidente Juscelino, como prova de que realmente haviam obtido o direito de executar as obras, os diretores iam à agência na esperança de levantar empréstimos.

Galeria 

As instalações comerciais eram improvisadas de acordo com as possibilidades materiais. 15/12/1958. Arquivo Público do Distrito Federal.
Consultório de dentista na Cidade Livre, em 1959: instalações comerciais adaptadas às possibilidades materiais. (Foto: Arquivo Público do DF)
Via principal da Cidade Livre. 09/1959. Arquivo Público do Distrito Federal.
Passageiros aguardam ônibus na via principal da Cidade Livre, em 1959. (Foto: Arquivo Público do DF)
Vista aérea da avenida principal do Núcleo Bandeirante. Arquivo Público do Distrito Federal.
Vista aérea da avenida principal do Núcleo Bandeirante. (Foto: Arquivo Público do DF)

 

Prazer na rua Principal
Quando a noite caía, parte dos trabalhadores se recolhia com a família em seus barracos de madeira, mas a vida continuava pulsando em outros pontos da Cidade Livre, especialmente no final da rua Principal, onde ficavam os prostíbulos mais frequentados. Ali havia um conjunto de barracos brancos, dos dois lados da rua, totalizando cerca de 800 metros quadrados de boates, casas de shows e quartos de aluguel rotativo.

O principal ponto de encontro era na esquina da rua Principal, onde ficava o ponto de ônibus do Posto Cascão. Ali, as prostitutas encontravam dois tipos de cliente: os mais endinheirados, que as abordavam enquanto abasteciam seus carros no posto, e os mais pobres, que voltavam do trabalho de ônibus.

Se o dia era cansativo para os candangos que trabalhavam nos canteiros de obra, a noite provavelmente era extenuante para as mulheres que atendiam na rua Principal. Uma dessas prostitutas tornou-se lenda: Maria Tomba-Homem, assim chamada por causa do grande número de clientes que conseguia atender numa só noite.

Histórias da Cidade Livre

A Sacolândia

Muitos barracos eram feitos com sacos de cimento vazios que, uma vez molhados, endureciam, por causa dos resíduos do produto. Eles apareceram primeiramente na Cidade Livre, mas a verdadeira Sacolândia surgiu numa invasão de terras promovida por operários demitidos.

Sem condições de retornar a seus locais de origem, cerca de 500 trabalhadores dispensados pelo IAPI (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários) resolveram montar seus barracos com a matéria-prima abundante e gratuita — os sacos de cimento descartados. Aproximadamente 400 alojamentos desse tipo foram construídos entre as quadras 105 e 106 Sul, e mais tarde removidos.

A dançarina cubana que nasceu no Rio 

Cantora e dançarina, Celma Costa nasceu no Rio de Janeiro, mas fazia sucesso nas boates. Muito sensual na rumba, Celma costumava deixar os operários sem fôlego ao dançar. Eram enormes as filas para seus shows, que só começavam por volta das três horas da manhã, quando a clientela já havia consumido e bebido muito.

Percevejos democráticos

A grande maioria dos colchões nos alojamentos das construtoras era forrado com capim, o que facilitou o surgimento de uma praga de percevejos. Para conseguir dormir, os operários precisavam espalhar inseticida no alojamento.

Mas percevejo não era problema só dos peões. No Catetinho, todo construído com madeira, os percevejos também apareciam, inclusive na cama do presidente Juscelino. Quando os descobriu, dona Joana, responsável pela limpeza do palácio, resolveu o problema de outra forma: foi até a Cidade Livre, comprou fumo de rolo, misturou com algumas raízes e enfiou tudo embaixo da cama do presidente. Deu certo: pelo menos do quarto do presidente, os percevejos desapareceram.

Poeira até na hora de acordar

Nos acampamentos das construtoras, cada quarto tinha dois beliches — ou, às vezes, “treliches”, três camas sobrepostas. Todos queriam dormir na mais alta, porque, mesmo durante a noite, a poeira infernal de Brasília entrava nos alojamentos pelas frestas das paredes de tábua. Os que dormiam nas camas mais baixas costumavam acordar tossindo, fungando e com o rosto empoeirado.

Faltou coragem? Vai de pinga

No alojamento dos engenheiros, toda noite havia uma cena quase ritual: o sujeito tomava uma dose caprichada de cachaça, fazia uma careta e entrava correndo no banho. A “pinga do banho”, como diziam, esquentava o peito e dava coragem para encarar a água fria.

Cinema nos alojamentos

Uma das poucas diversões dos operários era o cinema. As construtoras alugavam e projetavam filmes em telões ou mesmo nas paredes dos alojamentos. Para muitos, que nunca haviam entrado num cinema antes, era um deslumbramento. As películas, em geral, eram nacionais, à exceção dos exibidos pela construtora Planalto, que, apesar do nome, era norte-americana. Para inveja do pessoal dos outros alojamentos, ela só exibia produções de Hollywood e abusava dos faroestes.

As artes do prazer em Luziânia

Dois meses depois da instalação da Novacap e do início das obras, um grupo de engenheiros teve uma ideia: alugou um caminhão e recomendou ao motorista que só voltasse quando encontrasse prostitutas dispostas a se instalar nas proximidades da cidade nascente. Um mês depois, o caminhoneiro voltou, trazendo de Uruaçu, Minas Gerais, três mulheres — que já chegaram acenando para os operários, bem desinibidas.

Na periferia de Luziânia, a 60 quilômetros de Brasília, os engenheiros fizeram subir, da noite para o dia, três casinhas de madeira, uma para cada mulher. Luziânia era um lugarejo tristonho e pobre, saudoso do ciclo do ouro goiano, mas a rua das três casinhas era vibrante e barulhenta, especialmente ao anoitecer, quando os clientes começavam a chegar.

Com o avanço das obras e o aumento da demanda, veio a concorrência das mulheres que “faziam ponto” na rua Principal da Cidade Livre. Dispensadas depois da inauguração, muitas foram também se instalar na “zona” de Luziânia, que ainda sobreviveu por muitos anos.

O coronel e as pernas da vedete 

Ana do Couto Martins nasceu em Araguari, Minas Gerais, mas se tornou famosa no Rio de Janeiro, durante a década de 1950, com o nome artístico de Joana d’Arc. Vedete do teatro de revista, ela fazia sucesso nos palcos e cabarés da praça Tiradentes.

A fama não veio por acaso. Além da beleza, Joana d’Arc tinha talento, cantava, dançava, rebolava e dizia textos de duplo sentido. Para completar, foi eleita pelo jornalista Sérgio Porto (que assinava suas crônicas como Stanislaw Ponte Preta) uma das “dez mulheres mais bem despidas do Brasil”.

A notícia de que ela faria três shows no palco do cine Bandeirantes agitou a Cidade Livre. Primeiro, ninguém acreditou; depois, começou a correria por ingressos. Preocupado com a confusão que se instalava, Israel Pinheiro determinou ao coronel Antônio Alves Pinto, da temida Guarda Especial de Brasília (GEB), que mantivesse a ordem “a qualquer custo”.

Além de mandar seus homens cercar o cinema, o coronel ainda resolveu subir ao palco, na hora do show, para exigir da plateia que se comportasse. Nervosíssimo, ao lado de Joana d’Arc vestida só de maiô, o coronel se embaraçou e disse: “eu vim aqui a mando do doutor Israel para manter a ordem”. Respirou fundo e completou: “E eu manto, manto e manto!”, garantiu, atropelando a conjugação verbal.

Os shows de Joana d’Arc no cine Bandeirantes foram um sucesso estrondoso. O coronel Antônio também se tornaria um personagem conhecidíssimo na Cidade Livre e no canteiro de obras de Brasília — mas como “coronel Manto”.